sexta-feira, 6 de maio de 2011

O Homem na Margem do Rio

          Ele foi um dos melhores passageiros que já tive. O homem que espera de pé, todos dias,  na outra margem do rio.
          Tocou a sineta, me entregou uma moeda, subiu a bordo e apenas se sentou. Não disse nada, não sentiu nada, não pensou nada. Seu corpo, ou melhor, seu espírito estava ali, mas simplesmente estava, não fazia nada além de existir. Sem motivação, sem forças, sem vida. O verdadeiro morto, aquele que já se fora muito antes de chegar aqui. Um dos melhores passageiros que já tive.
          Gosto de almas assim. Gosto de analisá-las, saber o que as trouxe aqui, o que as matou antes mesmo de morrerem. Quanto maior o silêncio, quanto maior o mistério, mais a viagem torna-se prazerosa, mais me apego aquela dor. Dizemos muito mais quando não falamos, e aquele homem gritava com toda a sua inércia, exclamava sua dor com a garganta de uma estátua.
          Seu olhar era vago, mas não do tipo que demonstra alguma coisa acontecendo por traz das pupilas dilatadas. Era um vazio imenso. Não olhava o horizonte, não olhava o barco, não olhava nada. Era como se dentro daquela alma não tivesse uma alma, se não conhecesse as coisas, eu diria q era apenas a casca que o envolvera em sua vida que estava perante a mim. Aquele olhar me dizia que ele realmente morrera antes de perder a vida. Algo o fizera perder realmente a vontade, mas não estava claro o que era, ele não expressava nada além do vazio. Será que ele realmente encarara o abismo? Quando se contempla o abismo por muito tempo, o abismo acaba contemplando você.
          Larguei meu remo e sentei-me de frente para aquela esfinge. Decifra-me ou devoro-te, as palavras melodiosas dançaram em minha mente. Enquanto o barco seguia vagarosamente seu curso e o homem contemplava o infinito, um leve movimento em sua garganta, imperceptível para olhos não treinados, contou mais um pouco sua historia. Ele engolira a seco, um breve subir e descer de seu pomo de adão. Algo estava entalado, algo que o perseguia até mesmo em sua morte. Um fardo tão pesado quanto este só poderia ser uma coisa. Arrependimento.
          Não era um arrependimento comum, nem daqueles que se leva para além-túmulo. Era forte, tinha o quebrado para o resto de sua existência. Que arrependimento era aquele? Era algo que deixou de dizer? De fazer? Algum assunto pendente que não pode resolver antes da cortina final? Algum ultimo desejo que não conseguiu realizar? O enigma se desdobrava como uma figura de papel, a cada aba que se abria, mais a forma original se apresentava.
          Coloquei minha máscara ao meu lado, como se o convidasse a retirar a dele e me revelar sua verdade. Os olhos dele nem se moveram, nem sequer se abalaram com as insanidades que meu rosto revelava. O homem estava quebrado e arrependido, o que mais eu poderia conseguir dali? O que mais ele iria me contar?
Almas não respiram, elas não precisam, mas quando chegam ainda estão acostumadas com o mundo lá de cima e a respiração, mesmo não necessária, se torna inevitável. Alguns ainda teimam em encher os pulmões mesmo depois de eras no Submundo, não que isso tenha algo a ver com a incógnita na minha frente, mas o inflar de seu peito, ritmado, subitamente consentiu em me ceder mais um pouco de deleite em minha investigação. Um rápido suspiro, o ultimo recurso dos desesperados. Um suspiro que somado ao peso daquele arrependimento só significava uma coisa, ele procurava redenção. Fizera o mal há alguém muito querido, muito importante. Um amor de sua vida, mulher, família, amigo. Fizera um mal que nem mesmo ele pode se perdoar, nem mesmo após terminar sua vida, talvez ele mesmo a tenha terminado tentando apagar a dor que o injuriava. Arrependimento procurando redenção de alguém a quem se ama.
          Ele era jovem, aparentava seus vinte e poucos anos. Almas também não respeitam aparência, tomam a forma que bem entenderem, a idade que desejarem, mas não quando chegam. Quando entram no meu barco são cópias escarradas do que foram na morte, meros manequins tentando se adaptar a nova ordem. Alguém tão jovem não teria filhos e, se tivesse, seriam jovens demais para darem a redenção que ele procurava. Sua frustração indicava que a redenção poderia ser encontrada, mas infelizmente não fora. Família também não fora. Pais, mães e irmãos sempre perdoam, não importa o que você faça e, se não perdoam, na morte tudo é esquecido, assim eles se enganam quanto à família. Restavam amigos e um amor.
          Nenhuma injuria justificava tal pena, nenhum pecado legitimava aquele nulo que se estampava em seus olhos, seja por amor seja por amigos. O que poderia explicar aquilo seria a soma dos dois, a soma da paixão com a amizade, a soma do amor com a cumplicidade, a soma que se entende como o verdadeiro amor. A alma gêmea que completa o todo, a metade que todo ser da superfície busca, a única coisa que supera qualquer barreira, mortal ou imortal, mundana ou divina. O olhar do jovem agora fazia sentido, toda aquela dor reprimida, toda aquela culpa, toda aquela incerteza agora finalmente se desmascaravam para mim.
          Levantei e coloquei minha máscara, voltei a guiar o barco com meu remo. Estava selado o diagnostico do que afligia aquela pobre alma, eu havia decifrado mais um passageiro. Eu encontro todo o tipo de pessoas, das ricas as pobres, das felizes as tristes, das quietas as faladeiras. Eu sou um dos poucos pontos que será verdade na existência de todas elas, e de todas que necessitam de minha travessia, somente algumas chamam minha atenção. Ele é um dos melhores passageiros que eu já tive. Sua solitude disse tudo, mesmo sem querer expressar nada. Continuei a navegar até a outra margem do rio, o jovem permaneceu da mesma maneira, fitando o nada que seu coração agora era.
          O barco atracou e o rapaz se levantou, molhou até seus joelhos no rio das almas e foi andando até a parte seca.
          – Você ainda vai encontrá-la. O amor verdadeiro sempre volta, supera qualquer obstáculo.
          Eu não costumo socializar com meus passageiros, mas este era um caso especial.
          – Como sabe disso? Como sabe o que eu fiz? Como sabe o que irá acontecer?
          A voz do jovem tremeu com o pouco de brilho que se lançou em seus olhos.
          – Apenas sei.
          – Pouco importa, eu estou morto e ela felizmente ainda vive, passarei a eternidade nesse lugar, pagando por tudo que fiz, sem nunca mais vê-la.
          – Um dia minha sineta irá tocar e uma jovem com este mesmo olhar estará esperando para eu atravessá-la para esta margem, achando que nada mais faz sentido. Nesse dia, você estará aqui para finalmente reavê-la, não importa a eternidade que se passe. O que você tem é amor verdadeiro, é a graça mais única que alguém pode receber.
          Eu empurrei o barco com o remo e naveguei rumo à longínqua margem. O jovem permanecia atônito com minhas ultimas palavras, não sabia se deixava a esperança o dominar ou se voltava a se ater no seu desespero. Uma escolha difícil para se enfrentar na eternidade.
          – Quando isso acontecerá? Como saberei? – gritou da terra seca com um leve medo.
          – Você saberá. – sussurrei – Você saberá.

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